Em 1997, foi promulgada a Lei nº 9.433, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) atualmente em vigor no Brasil. A redação da lei aponta para o aspecto fundamental de toda a questão das águas: a disponibilidade do recurso é limitada e é necessário gerir o seu uso para assegurar a perenidade à geração atual e às gerações futuras.
Do ponto de visto econômico, dizer que um bem é limitado significa dizer que ele é escasso e dotado de valor monetário. Daí que a sua utilização racional seja a via que nos entrega as maiores chances de garantir a disponibilidade duradoura do recurso. A Política Nacional de Recursos Hídricos reconhece explicitamente a escassez, e seus instrumentos e diretrizes são orientados para alcançar o objetivo desafiador de gerenciar os recursos hídricos visando a manutenção de disponibilidade.
A demanda brasileira pela água é irregular no tempo e no espaço. Necessitamos de muita água para produzir alimentos através da agricultura irrigada e para abastecer as populações das cidades. Em menor magnitude, mas também significativamente, demandamos água para abastecer as indústrias, a dessedentação de animais, as termelétricas, a mineração e o abastecimento de populações rurais. Esse panorama de consumo pode ser visualizado no gráfico abaixo, retirado da publicação Livro Azul, do IBRAM (2025). No entanto, nem sempre a demanda ocorre onde há maior disponibilidade hídrica, o que reforça a necessidade de uma gestão eficiente e baseada em dados confiáveis.

Usos consuntivos de água no Brasil por setor em 2023 — Fonte: IBRAM (2025).
O uso racional remete ao uso conforme a necessidade. Remete também ao planejamento em suas diferentes facetas visando prevenir a existência de conflitos e, as ferramentas para lidar com os embates, quando não se pode evitá-los.
Independente do aspecto pelo qual se aborde o uso racional da água e a gestão hídrica – as quais podem coincidir, na prática – um fator é indispensável: o conhecimento detalhado dos recursos hídricos existentes no território. Quase todos os instrumentos da Política Nacional de Águas estão, de alguma maneira, relacionados ao conhecimento da dinâmica das águas superficiais e subterrâneas.
Neste artigo, fala-se especificamente sobre as águas superficiais. Os planos de recursos hídricos são alicerçados, em parte, no conhecimento das vazões dos córregos e rios. De modo semelhante, os processos de outorga de captação são embasados nas vazões que limitam as retiradas de água e definem os fluxos residuais mínimos a jusante. O Sistema Nacional de Informações sobre Recursos Hídricos (SNIRH), por sua vez, consolida os dados hidrológicos monitorados no país e os disponibilizam ao público.
PLANOS DE RECURSOS HÍDRICOS
Os planos de recursos hídricos são, essencialmente, a estruturação das diretrizes e metas da gestão hídrica das bacias hidrográficas. Independentemente da escala espacial, o monitoramento das vazões superficiais embasará a identificação das áreas com superávit ou déficit hídrico, que por sua vez fornecerá suporte ao desenho das linhas gerais de atuação do plano.
Na imagem abaixo, mostra-se um mapa de vazões mínimas específicas (q7,10) para o estado de Minas Gerais, tal como apresentado no Plano Estadual de Recursos Hídricos (IGAM, 2011). Neste mapa as cores representam as diferentes faixas de vazões específicas mínimas. A obtenção dos valores que deram origem ao mapa depende diretamente das séries históricas disponíveis para as estações fluviométricas distribuídas no território do estado.

Vazões específicas mínimas (q7,10) no estado de Minas Gerais — Fonte: IGAM (2011).
A Q7,10 representa a menor vazão média diária que ocorreria durante sete dias consecutivos, com recorrência de 10 anos. Os pesquisadores estimam esse valor a partir da análise estatística de séries históricas de vazão registradas nas estações
Não existe uma estação fluviométrica em cada curso de água do Estado de Minas Gerais, entretanto, as informações contidas no mapa abrangem todo o estado. Isso é possível através da aplicação de outra técnica estatística: a regionalização. Esta técnica consiste em transferir informações de um local com dados de vazão disponíveis para outros locais onde não há o monitoramento, através do ajuste de equações com validade regional.
A qualidade da avaliação da disponibilidade hídrica superficial, que fundamenta os planos de gestão, depende diretamente do monitoramento hidrológico de vazões nas bacias, tanto em relação à quantidade de estações, quanto em relação à extensão das séries históricas disponíveis e consistência dos registros.
OUTORGA DE DIREITO DE USO DA ÁGUA
A outorga é um instrumento da Política Nacional de Recursos Hídricos, através do qual os usuários obtêm a autorização administrativa para a utilização ou a intervenção em recursos hídricos. De modo geral, qualquer atividade que acarrete ou possa acarretar alteração na qualidade ou quantidade dos recursos hídricos é passível de outorga.
São alguns exemplos de usos sujeitos a outorga: captações ou derivações em corpos de água para consumo final ou insumo produtivo; extração de água de aquífero subterrâneo para consumo final ou insumo produtivo; lançamento de efluente em corpo de água; aproveitamento de potencial hidrelétrico, entre outros.
Dentro dos processos de outorga de usos consuntivos, principalmente captações ou derivações superficiais, isto é, aqueles usos em que a disponibilidade hídrica é subtraída do sistema, o usuário é demandado a apresentar relatórios técnicos demonstrando dois aspectos básicos:
- Disponibilidade Hídrica, em que se elabora o balanço entre a vazão mínima disponível e os usos já outorgados, a fim de verificar a existência da vazão que ainda resta outorgável;
- Manutenção da Vazão Residual, em que se demonstra que a captação será feita de modo a manter a vazão mínima necessária a jusante (vazão ecológica ou sanitária).
Ambos os aspectos dependem diretamente de séries históricas de vazão que sejam suficientemente extensas e confiáveis. Isto demonstra que a autorização da modalidade de uso das águas superficiais que mais impacta a disponibilidade está diretamente ligada ao monitoramento hidrológico de vazões.
Da perspectiva do órgão ambiental, o banco de dados de outorgas é uma ferramenta estratégica de gestão das águas, uma vez que subsidia o balanço hídrico das bacias. A qualidade e a quantidade das séries de vazão estão diretamente ligadas à consistência das informações no que diz respeito à confiabilidade dos dados. Os dados de vazão são usados para definir limites de retirada e períodos de restrição, especialmente na fase seca do ano hidrológico.
SISTEMAS DE INFORMAÇÃO SOBRE RECURSOS HÍDRICOS (SNIRH)
O SNIRH consolida os dados hidrológicos produzidos pela Rede Hidrometeorológica Nacional (RHN), disponibilizando séries históricas de vazão, precipitação, sedimentos e qualidade da água, em plataforma pública.
Além da abrangência da rede, a qualidade dos dados gerados é o fator crítico. As informações disponibilizadas pelo SNIRH passam por processos de consistência técnica conduzidos pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA).
CENÁRIO BRASILEIRO ATUAL
A vazão escoando em um canal natural é uma variável aleatória que pode assumir muitos valores diferentes. Embora a sazonalidade possa fornecer alguma previsibilidade, o nível da gestão hídrica requerida para um território extenso e dinâmico como o brasileiro exige mais. Para variáveis aleatórias, se faz necessário o tratamento estatístico. E o conhecimento que a estatística pode prover é tão robusto quanto o for o corpo de dados amostral.
As técnicas estatísticas são ferramentas que permitem o conhecimento a respeito de uma variável que se comporta aleatoriamente. Mas as ferramentas não criam informação. Ao contrário, se alimentam dos dados amostrais existentes para fornecer prognósticos com algum grau de incerteza. Dito de outro modo, é preciso sempre coletar sempre mais dados para reduzir a incerteza estatística.
Daí que o monitoramento hidrológico de vazões superficiais seja um aspecto fundamental dentro da Lei das Águas brasileira. As ferramentas de gestão se alimentam das séries históricas monitoradas sistematicamente.. Em última análise, não é desacerto dizer que o alcance dos objetivos propostos na lei dependerá diretamente do monitoramento hidrológico.
O Brasil dispõe de uma Rede Hidrometeorológica Nacional (RHN). A Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) coordena esta, em parceria com outras instituições federais e entidades estaduais. De acordo com o relatório Conjuntura Recursos Hídricos Brasil – Informa Anual 2024 da ANA, a RNH possuía, em 2023, mais de 23 mil estações sob responsabilidade de diferentes entidades. Deste total, seriam 1.928 estações fluviométricas, isto é, estações que se medem as vazões médias diárias dos córregos e rios, sob gerência direta da ANA.
Há de se destacar que as 1.928 estações fluviométricas da ANA estão distribuídas nas 12 regiões hidrográficas do Brasil. Porém, a densidade varia: regiões como a Amazônia e o Pantanal têm menor cobertura, enquanto a bacia do Paraná tem maior concentração de estações. Em geral, as estações se concentram em regiões de maior demanda hídrica, tais como as regiões Sul e Sudeste.
Estimar o percentual de cobertura territorial do monitoramento de vazões superficiais em córregos e rios do território brasileiro pode ser desafiador devido à vasta extensão do território e à riqueza da potamografia. Estima-se que em 2012, de um total de 12.963 rios cadastrados no Sistema de Informações Hidrológicas, cerca de 2.176 eram monitorados pela RHN, representando aproximadamente 17% dos rios brasileiros (DE ALMEIDA MONTE-MOR, 2012; MUNIZ, 2013).
O número de estações fluviométricas sob responsabilidade da ANA cresceu cerca de 18% desde 2012 até abril de 2025, como se pode visualizar no gráfico abaixo, consultado no Planejamento da Operação do Sistema Nacional de Informações Sobre Recursos Hídricos (SNIRH). Em 2012 eram 1.548 estações fluviométricas, ao passo que atualmente são 1.829. Este panorama da evolução do monitoramento das vazões superficiais pela ANA sugere que a estimativa de cobertura territorial pode ser superior à 17%.

Evolução na quantidade de estações fluviométricas da RNH (2012 a 2025)
DESAFIOS DO MONITORAMENTO HIDROLÓGICO
As dificuldades do monitoramento hidrológico de vazões superficiais em rios e córregos são diversas e envolvem todas as etapas da atividade. Desde a concepção de uma rede hidrométrica, em que se busca analisar a bacia hidrográfica para posicionar estrategicamente os locais de observação, passando pela instalação das infraestruturas das estações, a aquisição, o tratamento e a consistência periódica dos dados. As dificuldades logísticas são marcantes e, em parte, explicam a diferença na densidade de pontos do território brasileiro.